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Das Lied von der Erde: A Canção da Terra, poemas chineses do século 8 musicados pelo grandioso Mahler

Algumas das mais belas obras de arte da história nasceram da dor humana. Soberano da música vienense da virada do século 19 para o século 20, um dos gigantes da música austro-húngara junto com Richard Strauss e autor de nove sinfonias e meia (ele não concluiu a Décima), quando Gustav Mahler compôs Das Lied von der Erde, entre 1908 e 1909, ele ainda ressentia a sua saída, em 1907, da Ópera da Corte de Viena, a mais alta posição da música centro-europeia, da qual era diretor havia dez anos.

O motivo? Perseguição antissemita. Lembre-se de que estamos na Europa pré-Primeira Guerra, o Império Austro-Húngaro ainda está firme e forte — por isso a ópera era “da corte” — e o prefeito de Viena da época, Karl Lüeger, que culpava os judeus pelos problemas econômicos causados na verdade pelo capitalismo, já era um dos ídolos do ainda jovem Adolf Hitler; detalhe: Mahler já havia se convertido ao catolicismo em 1897 para assumir a Ópera de Viena.

Teve mais: suas duas filhas haviam ficado doentes (a mais velha, de apenas cinco anos de idade, morreria no mesmo verão de 1907); sua esposa, a bela e controversa Alma, o traía com Walter Gropius, fundador da Bauhaus, com quem se casaria após a morte do marido; e ele tinha de reduzir suas atividades por conta da descoberta de uma doença cardíaca, que o mataria quatro anos mais tarde, aos 50 anos de idade (nesta época, o antibiótico, que o teria salvado, ainda não havia sido descoberto).

Ou seja, apesar do reconhecimento e da confortável situação financeira, foi um ano difícil para compositor e regente conhecido também por ser tempestuoso, despótico e infantil, que assumiria ainda em 1907 o Metropolitan Opera de Nova York, que regeria até sua morte, em 1911.

“ESCURA É A VIDA, E TAMBÉM A MORTE”

Nesta época, Gustav Mahler tem acesso ao recém-lançado livro Die chinesische Flöte (“A flauta chinesa”), uma coletânea de 83 poemas de 38 autores chineses do século 8 (dinastia T’ang), traduzida para o alemão pelo também poeta Hans Bethge. Os textos que tratam da vida, da natureza, da solidão, e da impermanência e transitoriedade de coisas, situações e pessoas (temas tão típicos das filosofias orientais) ressoam na alma de Mahler, e, assim, ele escolhe seis poemas que serão transformados em A Canção da Terra, uma sinfonia para orquestra e duas vozes, que é considerada como grande obra.

A MONTAGEM DE YOSHI OIDA NO SESC PINHEIROS EM 2017-2018

Existem duas versões para Das Lied von der Erde:  1. a versão original de Mahler escrita para orquestra completa e 2. a versão de câmara (com menos instrumentos), reescrita pelo não menos genial Arnold Schoenberg (mas que só foi finalizada por Rainer Riehn em 1980).

E foi essa última que o ator e dramaturgo japonês radicado na Europa há 50 anos, Yoshi Oida, escolheu para a sua montagem da Canção que esteve em cartaz no Sesc Pinheiros até 14 de janeiro de 2018.

Por ser uma versão mais “simples” — a orquestra Ensemble Instituto Fukuda se apresentou com 21 músicos, regidos pela maestrina Érika Hindrikson —, a música não tem o mesmo impacto se comparada com a versão original tocada por uma orquestra com maior variedade de instrumentos e o triplo da quantidade de músicos (e você pode até se questionar como essa pode ter sido considerada uma das obras-primas de Mahler por conta da menor “impressão” ocasionada pela versão de câmara + os cantores que não empolgam muito nos primeiros trinta minutos de apresentação).

Oida também cria uma história para acompanhar a ópera: os cantores, que se alternam a cada música (é interessante o fato de eles nunca cantarem juntos), se transformam aqui nos pais de uma menina que acaba de morrer, velando o corpo da filha (a morte está sempre presente no palco) em um templo budista acompanhados por quatro monges (atuações ocorrem também entre um movimento e outro em um quase completo silêncio, quebrado apenas pelos sons dos passos dos atores no caminho de pedras e pela fonte de bambu que é ligada toda vez que a música acaba e desligada quando ela recomeça).

A montagem de Oida poderia emocionar mais, talvez com outros cantores ou com uma iluminação mais dramática ao longo da apresentação (uma luz chapada em todo o palco durante grande parte do tempo tira um pouco do clima). Mas o que ele faz no final é tão divino, poético e contemplativo, que, junto com a última música (a belíssima “Despedida” — Der Abschied, no alemão original —, que dura quase metade da apresentação; ouça abaixo e vá para o minuto 16’55” para a parte que eu mais amo), faz com que essa seja uma oportunidade-a-não-perder de ouvir ao vivo A Canção da Terra de Gustav Mahler. Porque você não vai encontrar no Youtube.

SERVIÇO
De 5 a 14 de janeiro de 2018 (apenas duas semanas, com apresentações de sexta a domingo)
Sexta e sábado, às 21h
Domingo, às 18h
Teatro Paulo Autran no Sesc Pinheiros, em São Paulo
Rua Paes Leme, 195, no subsolo
Telefone 11 3095-9400
Ingressos de R$ 18 a R$ 60
Classificação 14 anos.
{Clique aqui para comprar seu ingresso}

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Shoichi Iwashita

Compulsivo por informação e colecionador de moleskines com anotações de viagens e restaurantes, Shoichi Iwashita se dedica a compartilhar seu repertório através das matérias que escreve para a Simonde e revistas como Robb Report Brasil, TOP Destinos, The Traveller, Luxury Travel e Unquiet.

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