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Um Bonde Chamado Desejo; outro chamado Cemitérios

© Joao Caldas Fº

Decadente e atormentada, sim. Mas Blanche DuBois não é uma patricinha bonita e surtada que vive no mundo fantasia. É uma menina bem nascida — era “meiga e confiante”, nas palavras da irmã — que não suportou o suicídio do marido, seu primeiro e único amor (“era como se uma luz ofuscante iluminasse o que sempre havia estado nas sombras”; “tudo o que eu sabia é que eu não consegui ajudá-lo com os problemas dos quais ele não conseguia falar” ), e que, após a tragédia, encontrou no sexo com muitos parceiros num hotelzinho barato para prostitutas uma maneira de preencher seu vazio existencial. E se perdeu. Se perdeu de si mesmo a ponto de só conseguir sobreviver na magia e não mais na realidade (“Magia! Sim, sim, magia! Eu tento dar isso para as pessoas.” ). Desprovida de sua honra, de sua propriedade — a fazenda Belle Rêve, que pertencia há gerações à sua família — e de seu emprego como professora de literatura depois de se envolver com um aluno menor de idade na cidade onde nascera e crescera, a minúscula Laurel, no estado do Mississippi, Blanche se vê obrigada a ir morar num minúsculo sobrado que sua irmã mais nova, Stella DuBois, e seu marido Stanley dividem com mais uma família, no estado vizinho da Louisina, em Nova Orleans. Para chegar até lá, ela vai precisar pegar um bonde chamado Desejo e fazer uma baldeação para pegar outro chamado Cemitérios. Os nomes dos bondes contam bem essa história.

Vestida delicadamente com luvas, chapéu e terno brancos, colar e brincos de pérola, e carregando uma valise, Blanche chega a Elysian Fields no número 632. O choque não foi só ver a irmã morando naquele cortiço — feliz com sua vida simples e agora grávida — mas ter de confrontar com o cunhado, Stanley Kowalski, um imigrante polonês, trabalhador, confiante e rústico (o extremo oposto de Blanche e Stella), que coloca em cheque suas histórias, a começar pela perda da propriedade, que seria a herança de Blanche e Stella e, segundo o Código Napoleônico vigente em Louisiana, dele também. (A tensão sexual entre os dois é latente desde que se encontram, e Blanche não faz questão de esconder isso nem da irmã.) E é nos jogos de pôquer que Stanley organiza em casa com os amigos operários que Blanche conhece Mitchell, o melhor amigo do cunhado, um solteirão de meia idade com uma gentileza acima da média daquele contexto social e que mora com a mãe doente. E, nele, a Branca do Bosque (Blanche DuBois em português) vê sua oportunidade de sair da casa da irmã e de, anônima que é na nova cidade e assumindo lá — ou resgatando — uma identidade casta e romântica, recomeçar a vida.

Para a cada vez maior irritação de Stanley na casa minúscula de um só banheiro, Blanche passa horas no banho quente “por causa dos nervos” e não gosta da luz. Coloca um filtro na luminária para diminuir a claridade da sala; nunca aceitou sair com Mitch durante o dia, apenas à noite, e na penumbra (um reflexo de sua aversão cada vez maior à realidade?). O cunhado polonês vai atrás da verdadeira história, conta tudo para Stella e Mitch, e o que poderia ser sua salvação, se torna mais uma frustração; a vida é cada vez mais insuportável. A conversa-confronto de Mitch com Blanche nessa hora de verdades — que ela não nega e se abre inteiramente — é um dos pontos altos — e cheios de ternura — do texto de Williams. Ela, presa à completa falta de opções, quer apenas tentar sair dali; da casa, de si mesmo. Mas ela não vai conseguir.

Numa das inúmeras discussões na casa entre Blanche e Stanley — ela cada vez mais distante; ele cada vez mais próximo — Stella sente as dores do parto e é levada para o hospital. Stanley volta para casa, e com Blanche sozinha, estupra uma mulher já beirando a loucura, psicológica e emocionalmente vulnerável (no texto de Williams, o ato fica subentendido); o suficiente para Blanche ter uma crise psicótica. E a solução que Stella e Stanley encontram é interná-la num hospital psiquiátrico. A cena final é extremamente dolorosa para todos — plateia inclusa — e só mostra que a vida pode nos dar sim uma cruz maior do que a gente pode carregar.

um-bonde-chamado-desejo-tennessee-williams-1200-1Maria Luísa Mendonça interpretando Blanche DuBois, em foto de João Caldas.

A HISTÓRIA DE UM BONDE CHAMADO DESEJO

A peça A Streetcar Named Desire, que ficou em cartaz na Broadway de 1947 a 1949 — com Marlon Brando interpretando Stanley nas 855 performances ao longo desses dois anos (Brando também atuaria na versão cinematográfica de 1951) — antes de ir para o West-End londrino, ainda em 1949, sob a direção de Laurence Olivier — com Vivien Leigh no papel de Blanche (Leigh também atuaria na versão cinematográfica de 1951) —, é uma das mais sofisticadas peças do teatro norte-americano do século 20 (ganhou o Prêmio Pulitzer de Teatro em 1948). E seu autor, Tennessee Williams, um dos maiores dramaturgos que os Estados Unidos produziu na sua história (ele ganharia outro Pulitzer em 1955 com Gata em Teto de Zinco Quente ou no nome original Cat on a Hot Tin Roof ). E algumas referências são autobiográficas: Williams era gay e sua irmã, a quem ele amava imensamente e que inspiraria Blanche, era esquizofrênica e havia sido internada várias vezes em hospitais psiquiátricos. Acabou sendo submetida a uma lobotomia, com autorização dos pais, que a incapacitou para o resto da vida. Williams nunca perdoaria seus pais por isso. Um Bonde Chamado Desejo  é um texto humano e atemporal que ousou tratar da homossexualidade, do suicídio, das diferenças de classes e das doenças mentais na década de 1940.

A MONTAGEM DE RAFAEL GOMES, DE 2015

Redondo do começo ao fim. Montagem à altura do texto perturbador de Tennessee Williams. Interpretações (a atriz Maria Luísa Mendonça nasceu para interpretar Blanche DuBois), iluminação, figurino, trilha sonora, cenário genial. No centro da arena, um cercado retangular e suspenso de madeira com rodinhas — parece um berço gigante — tem dentro dele inúmeros móveis que servem de mesas-cadeiras e caixas. Para poder caminhar pela casa, os atores precisam tirar as peças do lugar, movendo-as continuamente, o que impõe proximidade física entre os personagens; e não poderia comunicar melhor o aperto claustrofóbico de três pessoas habitando e convivendo num espaço minúsculo. Os atores fazem o papel de contrarregras, montando e desmontando o cenário, organizando os objetos, carregando os refletores e fazendo a iluminação. O único problema do formato arena é que dependendo de onde você estiver sentado, você perde as expressões dos atores já que eles podem estar de costas para você. Maravilhoso e imperdível.

© Joao Caldas FºMaria Luísa Mendonça interpretando Blanche DuBois, em foto de João Caldas.

Shoichi Iwashita

Compulsivo por informação e colecionador de moleskines com anotações de viagens e restaurantes, Shoichi Iwashita se dedica a compartilhar seu repertório através das matérias que escreve para a Simonde e revistas como Robb Report Brasil, TOP Destinos, The Traveller, Luxury Travel e Unquiet.

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