O Banquete: Um retrato indigesto do cinismo e da perversidade que pode permear as relações humanas, no novo filme de Daniela Thomas
Na minha juventude fui apaixonado pelos filmes do diretor francês François Ozon que se passavam inteiramente em um único ambiente, como Gouttes d’Eau Sur Pierres Brûlantes (de 1999) e Huit Femmes (de 2001, com um elenco formado pelo panteão das atrizes francesas; pense em Fanny Ardant, Isabelle Huppert, Emmanuelle Béart e Cathérine Deneuve juntas). A relação entre os sempre poucos personagens “presos” naquele cenário do lado de lá da tela, e nós, de cá, na caixa escura do cinema, por uma, duas horas, possui aquele capacidade mágica de nos transformar em moscas voyeurs quase oniscientes sobre a realidade e as emoções daqueles que compõem a narrativa. Um exercício desafiador para o diretor, o roteirista, o fotógrafo… Mas bem interessante para nós, espectadores.
Se os filmes do Ozon beiravam o kitsch, o novo filme de Daniela Thomas, O Banquete, é, como Clarice Lispector se referia à vida, um “soco no estômago”. O choro de Nora (em atuação primorosa de Drica Morais) que abre o filme, diante de sua mesa de jantar elegantemente montada, vazia, aguardando os convidados da noite, é como um presságio do desmoronamento do seu mundo — e de (quase) todos os que vão participar desse banquete regado a Brunellos, pratos afrodisíacos (assinados na vida real pela chef Bel Coelho), chef-garçom gatinho contratado para a noite, e a mais completa falta de limites na forma e no conteúdo das conversas; junto com a interpretação à beira do descontrole, o grande destaque do filme.
Conforme o nível etílico vai aumentando, passamos a conhecer os personagens — representantes da elite econômica e intelectual brasileira —, suas histórias e fragilidades, e as complexas relações de amizade, amor, de sexo e poder entre eles (a Cat Girl, no entanto, é a única penetra do filme; não dá para saber de onde ela veio e por que ela foi parar ali). E o jantar em torno de Mauro, o introspectivo mas mulherengo editor da revista para a qual grande parte da mesa trabalha, celebrando dez anos de casamento com a atriz Bia (um furacão na tela, interpretada por Mariana Lima), chega ao auge da tensão quando um telefonema informa a iminência de sua prisão (o personagem é inspirado no diretor de redação do jornal Folha de S. Paulo, Otávio Frias Filho, que faleceu um dia antes da exibição do filme no Festival de Gramado de 2018; e essa parte da história é baseada na publicação de uma carta escrita por ele ao presidente Fernando Collor de Mello na primeira página do jornal em 25 de abril de 1991, quando Otávio Frias era, assim como Mauro, casado com uma atriz, a Giulia Gam). Daqui em diante, o cinismo e a perversidade que sustentam essas amizades — principalmente por parte da maquiavélica Nora — vem à tona de forma indigesta e incômoda, quase insuportável. Porque rico ou pobre, mulher ou homem, negro ou branco: ninguém está livre; a existência de alguém próximo — um amigo, um namorado, um colega de trabalho — com o potencial de destruir o que nos é caro, é sempre — e apenas — uma questão de sorte (ou de oportunidade).
Apesar de o filme não oferecer um desfecho, e conhecendo grupos de pessoas na vida real que convivem sob essa mesma dinâmica, eu não me assustaria se soubesse que, na semana seguinte, eles estivessem todos juntos novamente, em um novo banquete.
Agora, deleite-se com o trailer. E aproveite ainda mais esta semana, no cinema, já em cartaz em onze capitais brasileiras.
A MAGIA DO CINEMA
O Banquete nos transporta esta noite para a intimidade daquela bela casa e parece ter sido gravado “ao vivo” por uma hora e vinte minutos ininterruptos, com cenas detalhadas que entregam a história (um cochicho na cozinha aqui, uma mão na bunda acolá). Mas me impressionou também quando soube que as gravações duraram um mês. Fico imaginando o desafio que é acompanhar – e reproduzir – os cabelos que vão se desgrenhando conforme os personagens ficam bêbados, a maquiagem que vai despencando por conta das lágrimas, o suor resultado do embate entre os personagens, de forma que a gente acredite e sinta na pele o faz de conta.
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