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Cruzeiro pelo Mediterrâneo Swan Hellenic: Quando uma viagem não entrega o luxo e a cultura que promete, e me faz refletir sobre problemas atuais do turismo

Sempre fico imaginando um viajante estrangeiro que não conhece São Paulo entrando no site do Palácio Tangará — parte de uma rede internacional de hotéis icônicos, das que mais gosto no mundo — e lendo que o hotel isolado, a treze quilômetros das lojas e restaurantes dos Jardins e de Pinheiros, e a vinte quilômetros da Pinacoteca, da Sala São Paulo e dos restaurantes do centro — ou seja, no mínimo, a duas horas de carro do hotel com o famigerado trânsito paulistano —, está localizado no “coração da cidade”. 

A questão é que essa disparidade entre o que é comunicado e o que é entregue em forma de produto-serviço-experiência tem se tornado recorrente em todas as áreas do mercado de luxo — na moda, na gastronomia, nas viagens —, uma vez que vivemos tempos quando um público cada vez maior, disposto a pagar cada vez mais caro para ostentar produtos e experiências exclusivas, é desprovido do repertório cultural e do conhecimento sobre este universo tão específico e cheio de códigos. E foi isso o que vivi na minha primeira experiência de cruzeiro com a Swan Hellenic.

A NOVA SWAN HELLENIC

A Swan Hellenic — o Cisne Helênico — de 2020 é o renascimento de uma companhia de cruzeiros fundada no Reino Unido na década de 1950, que tinha como incrível proposta oferecer expedições culturais pela Grécia, sempre tendo a bordo arqueólogos, historiadores e escritores para enriquecer a viagem. Quando lançou seus primeiros dois navios nesta nova e mais recente fase, o SH Minerva em 2021 e seu gêmeo SH Vega em 2022, o foco da companhia eram os cruzeiros de expedição no Ártico e na Antártica, com seus navios polares tecnológicos categoria PC6. Mas, logo, viriam roteiros culturais explorando o continente africano, além das rotas clássicas pelo Caribe, junto com o lançamento do SH Diana em 2023.

MAIS FUNCIONAIS QUE BONITOS; E BANHEIROS LONGE DE SEREM “LUXUOSOS” 

A grande maioria das cabines espalhadas por três deques, são a Oceanview, com 20 metros quadrados, e a Balcony, com 25 metros, sendo que a única diferença entre elas é a varanda. Imagem: Shoichi Iwashita
A cama confortável — e que nos salva quando o mar está revolto — é a melhor parte cabine. Imagem: Shoichi Iwashita
Banheiro simples, mal iluminado e com materiais bem distantes daqueles utilizados em projetos sofisticados, bem diferente do que diz o texto do site. Imagem: Shoichi Iwashita

No quesito design, os navios da Swan Hellenic são confortáveis, mas mais funcionais que bonitos; impressão mais recorrente quando a gente já começa a ver um movimento de ultraiates belíssimos, lançados ou prestes a serem lançados, por redes hoteleiras como Ritz-Carlton, Four Seasons e Aman, além dos novos navios de companhias de cruzeiros de luxo como Silversea, Regent e Ponant. 

A qualidade do mobiliário do SH Diana, em geral, está mais para Ikea que Minotti, com tecidos grossos, sofás desconfortáveis, incluindo o da cabine; eu tinha de tirar as almofadas de apoio das costas do sofá para me sentar mais confortavelmente… Os banheiros, descritos no site como “luxuosos” são simples, mal iluminados e com materiais bem distantes daqueles utilizados em projetos sofisticados. A qualidade das amenidades do banheiro também deixou muito, muito a desejar; um problema para viajantes que não levam — e nunca se preocuparam em levar — shampoo e sabonete na mala. 

Mas, se a TV grande e moderna e a qualidade da cama — bastante confortável — me fez relevar a discrepância entre o que li e o que encontrei, a questão da programação e da gastronomia foi bem mais problemática, ainda mais em um roteiro que tem no itinerário países de culturas distantes da nossa e de uma companhia que tem como motto “See what others don’t”. Me chocou o viés completamente eurocêntrico de uma viagem que tinha como tema e principal atrativo o norte da África, o Império de Cartago, os mouros e a influência árabe sobre a Europa. Ainda mais em tempos quando discutimos incansavelmente a responsabilidade social e o apagamento das vozes colonizadas ao longo da história.

 
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ROTEIRO BEM DESENHADO DENTRO DO TEMA

No roteiro intitulado Os Mistérios de Cartago e os Mouros, o grande destaque é a visita à Argélia, um dos países mais fechados do mundo para o turismo. E são quatro paradas no país, ao longo de dez dias. Em Bejaïa, considerada reserva da biosfera pela Unesco, encantam as paisagens de tirar o fôlego. Imagem: Shoichi Iwashita
Tangier, cidade portuária no Estreito de Gibraltar, é a única parada no Marrocos, antes de voltar para o “Ocidente”. Imagem: Shoichi Iwashita
Na parada em Túnis, capital da Tunísia e localização da antiga capital do poderoso império cartaginês, o passeio para Sidi Bou Saïd é imperdível. Com construções nas cores azul e branca e belas vistas para o Mediterrâneo, há séculos atrai intelectuais e ricos tunisianos. Era aqui que o estilista Azzedine Alaïa se reconectava com suas raízes tunisianas. E foi aqui que ele escolheu ser sepultado. Imagem: Shoichi Iwashita

Apaixonado pela história cartaginesa — e porque quando os brasileiros pensam em Mediterrâneo automaticamente pensam na Europa, mas se esquecem da África —, fiquei muito atraído pelo roteiro de 10 noites intitulado Os Mistérios de Cartago e os Mouros, roteiro que seria a viagem inaugural do terceiro navio da frota, o SH Diana, em abril de 2023. 

Começando na apaixonante Palermo, o navio passa pelos países muçulmanos do norte da África — incluindo a Argélia, um dos países mais fechados do mundo para o turismo, o Marrocos e a Tunísia, onde está a capital do que foi o império cartaginês —; sobe o rio Guadalquivir para chegar a Sevilha; e ainda visita a costa algarvia antes de desembarcar em Lisboa. No cardápio de roteiros Swan Hellenic, também existe a opção do percurso inverso. 

Por conta da temática do cruzeiro, achei o roteiro muito bem desenhado. De Palermo a Sevilha (e grande parte da Península Ibérica), essa região não só fez parte do Império de Cartago, e, depois, do Império Romano — quando os romanos vencem e fazem desaparecer seus inimigos cartagineses ao fim da Terceira-e-Definitiva Guerra Púnica, em 146 a.C —, como também foi território árabe-muçulmano por séculos; a Espanha, por mais de 700 anos. 

O contrário também ocorreu: se na Sevilha espanhola, a gente vai ver belos exemplos de Mudéjar, a arte e arquitetura cristãs que foram uma cópia não tão bem sucedida da arquitetura árabe, na Argel e na Oran argelinas, são belíssimos os edifícios ao estilo haussmannien francês, resultado da época quando o país foi colonizado e chegou a ser parte definitiva do estado francês. História que teve um desfecho trágico — com mais de 1 milhão de argelinos mortos de forma brutal pela França — quando o povo decide se libertar dos invasores franceses.  

PALESTRAS E GASTRONOMIA COMPLETAMENTE FORA DE CONTEXTO

O Observation Lounge é onde acontecem as apresentações sobre os próximos portos de parada, as palestras, onde as pessoas se reúnem à noite para ouvir um pianista tocar músicas americanas. Imagens: Shoichi Iwashita

Mas se a viagem tinha a temática moura-árabe, o cardápio de passeios estava repleto de visitas a ruínas romanas. Tendo assistido a todas as palestras da programação do cruzeiro — um dos destaques da Swan Hellenic —, naquela que um escritor-especialista convidado abordou a História da Navegação, tema tão amplo e fascinante, o palestrante (britânico) só falou das descobertas e conquistas de ingleses, holandeses e portugueses — teve até a história do Flinders, inglês que circunavegou a Austrália — sem abordar os fenícios (cartagineses!) que, 10.000 anos atrás, navegavam o Mediterrâneo, onde estávamos, e o oceano Atlântico; os egípcios; ou ainda os polinésios, povo que, com singelas canoas saiu da Oceania para o Havaí e a ilha de Páscoa, driblando todas as dificuldades do gigante Pacífico. 

Nas palestras sobre a realidade política de países do Oriente Médio e do Magreb, o palestrante, antigo oficial de relações exteriores dos EUA em diversos países da região, falava de uma forma completamente condescendente sobre esses países, sobre os conflitos, a pobreza, a corrupção, sem mencionar sequer o controle político-financeiro, a manipulação e as negociatas que países como a Inglaterra, a França, os Estados Unidos fizeram neste pedaço do mundo. Como se todas as terríveis consequências da realidade atual desses países fossem culpa deles apenas. A ponto de um viajante estadunidense se sentir à vontade para pegar o microfone e perguntar, em alto e bom som, sem qualquer pudor, se “esses países” não estariam em melhores condições se seguissem sendo explorados como colônias europeias…  

Na parte gastronômica, a mesma coisa. As apresentações sobre o porto de escala seguinte mostravam os pratos típicos, as especiarias, as tradições culinárias, mas, em todo o cruzeiro, não tivemos um único prato sequer que remetesse à gastronomia local; coisas simples de serem feitas… Mezze (como hummus, com grão de bico; babaganoush, com berinjela; tatziki, com pepino e iogurte), shakshouka (ovos e tomate), couscous, tagine, chá de menta… 

Ainda mais de uma cozinha que, ao longo dos dez dias, serviu comida indonésia, eslovena, tex-mex, hambúrguer com hot-dog, que tinha ótimos pães e viennoiseries. Tivemos uma paella improvisada quando chegamos à Sevilha, mas foi uma pena ter ignorado a passagem por três países árabes com ricas — e saborosas — tradições gastronômicas. Não teve nada da comida, da música, das tradições e dos costumes, dos códigos e das vestimentas, da história, da religião. E ainda estávamos no Ramadã, um período sagrado para os muçulmanos… 

Na questão da sustentabilidade — apesar da tecnologia verde certificada, aplicada na construção e operação do navio —, fiquei impressionado com a quantidade de carnes e de peixes como salmão servido nas refeições, dos sucos industrializados servidos no café da manhã (ao lado de diversos pratos de frutas in natura), do esquema buffet no café da manhã, no almoço e algumas vezes no jantar, que resulta sempre em enorme desperdício de comida. Em navios pequenos, muitas ações sustentáveis no que se refere à alimentação podem ser implementadas. 

TAMANHO IDEAL DO NAVIO SH DIANA

O navio de 410 pés que leva o nome da deusa romana da caça e da lua, filha de Júpiter e irmã gêmea de Febo (o Apolo da mitologia grega), e construído para explorar os lugares mais inóspitos do planeta com segurança, tem o tamanho perfeito: são apenas 96 cabines distribuídas em três deques, que abrigam até 192 passageiros — isso se o navio estiver lotado —, para uma tripulação de 127 pessoas. É daqueles navios pequenos que chegam a lugares impossíveis para grandes navios e em que você não precisa caminhar quilômetros diariamente. Bastam alguns passos para aproveitar a sauna seca panorâmica, a academia espaçosa e a jacuzzi aquecida do spa; a piscina de borda infinita e de água doce (raridade em navios); o restaurante principal e o Observation Lounge, salão onde acontecem as palestras diárias. Para entrar e sair do navio para os passeios, e nos dias do embarque e desembarque, assim como em todos os cruzeiros em navios pequenos e com poucas cabines, é tudo rápido, prático e confortável. 

QUAL CABINE DO SH DIANA ESCOLHER? 

As cabines ficam distribuídas em três deques: o 4, o 5 e o 6. No quarto deque, onde está o único restaurante do navio, estão as 20 cabines de entrada Oceanview com 20 metros quadrados e sem varanda. É importante saber que, tanto a categoria Oceanview quanto a Balcony com 25 metros quadrados — com varanda —, localizadas nos deques 5 e 6, são subdivididas em D e M. As cabines D são sempre mais baratas do que as M por conta de sua localização: as D ficam na proa ou na popa, enquanto as M estão no meio do navio, a parte mais estável e menos sujeita aos movimentos do mar. As cabines mais espaçosas são a Suite e a Premium Suite, ambas com 41 metros quadrados, varanda, cama king-size, banheira, walk-in closet e lareira. 

CONCLUSÃO

Cruzeiros são complexos. Você passa dias refém da proposta da companhia que você escolheu para viajar: tem a estrutura e o tamanho do navio (eu, por exemplo, tenho pavor de navios gigantescos com milhares de pessoas); a qualidade do projeto de interiores, dos materiais e acabamentos; a oferta gastronômica (sem ter para onde ir e porque está inclusa no valor da viagem, grande parte das refeições você fará a bordo); e, muito principalmente, como aquela companhia de cruzeiros se preparou para entregar o melhor dos destinos que fazem parte do itinerário. Quando se passa muito tempo dentro do navio e poucas horas em terra, é crucial para o sucesso de um cruzeiro sua programação, tanto das atividades a bordo quanto a oferta e o desenho dos passeios em cada porto de parada. E, em todos esses quesitos, a Swan Hellenic não entregou o que comunicou; e, em termos de preço, não fica muito atrás de outras companhias que entregam muito mais em sofisticação, passeios e gastronomia, e que são completamente all-inclusive (na Swan Hellenic, há os passeios que estão inclusos no valor da viagem e aqueles extras, que são cobrados à parte).

A Swan Hellenic é uma companhia segura, confortável e boutique para destinos inóspitos de natureza, mas deixou a desejar neste cruzeiro em que a imersão na cultura e na história dos destinos deveria ser a protagonista do itinerário. Porque viajantes cultos estão sempre dispostos a sacrificarem parte da sofisticação em troca de vivências únicas, aprofundadas e genuínas.

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Shoichi Iwashita

Compulsivo por informação e colecionador de moleskines com anotações de viagens e restaurantes, Shoichi Iwashita se dedica a compartilhar seu repertório através das matérias que escreve para a Simonde e revistas como Robb Report Brasil, TOP Destinos, The Traveller, Luxury Travel e Unquiet.

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