As Bodas de Fígaro: Quando um conde (casado) tenta atrapalhar o casamento de um servo e se dá mal
As duas primeiras peças que compõem a trilogia de Pierre Beaumarchais, 1. O Barbeiro de Sevilha e 2. O Matrimônio de Fígaro — estreadas na Comédie-Française em 1778 —, se transformariam em óperas conhecidas mundialmente: O Barbeiro de Sevilha duas vezes, primeiro por Giovanni Paisiello e depois por Gioachino Rossini (que é a versão mais famosa), e O Matrimônio, que recebeu o título de As Bodas de Fígaro e seria uma das obras-primas do repertório operístico de Mozart (a terceira, La Mère Coupable, também viraria ópera de Darius Milhaud).
Apesar da censura ao texto de Beaumarchais em Viena (a cidade ainda fazia parte do Sacro Império Romano-Germânico, antes mesmo do Império Austríaco e do Império Austro-Húngaro), o bem articulado libretista italiano Lorenzo da Ponte retiraria as partes ofensivas à monarquia, à religião e à ordem pública e conseguiria a aprovação do libretto com o Imperador José II, antes mesmo de Mozart começar a trabalhar a música desta opera buffa (ópera cômica); apesar dos esforços de sabotagem de Antonio Salieri, o arqui-inimigo de Mozart na corte.
Com sua estreia em Viena, três anos antes da Revolução Francesa, podemos dizer que As Bodas — com suas críticas ao poder estabelecido, ou seja, à nobreza — capturava bem o espírito da época (e a rainha francesa, Marie-Antoinette, adorava a obra de Beaumarchais; mal sabia ela que seria decapitada alguns anos mais tarde).
NESSA BODA LOUCA, O CONDE ALMAVIVA, CASADO, QUER A MULHER DO SERVO FÍGARO
Le Nozze di Figaro, o nome em italiano, é a continuação d’O Barbeiro de Sevilha e se passa alguns mais tarde, quando um “dia de loucura” (a continuação do título é “ossia la folle giornata”) acomete o palácio do Conde Almaviva, perto de Sevilha, na Espanha.
Agora, Rosina, a jovem com quem o Conde se casa no final d’O Barbeiro, é a Condessa; o médico-and-advogado que era apaixonado por Rosina, Dr. Bartolo, quer se vingar de Fígaro (foi Fígaro que ajudou o romance entre o Conde e Rosina) e se aproveita da dívida que Fígaro tem com sua empregada, Marcellina; e o Conde Almaviva deixou de ser o jovem-romântico-apaixonado-por-Rosina e se transforma no vil e recalcado barítono, que, depois de dar a Fígaro o cargo de chefe de todos os criados, quer sua mulher de qualquer jeito; e vai utilizar todo o seu poder para atrapalhar o casamento de seus dois servos, que está programado para esse mesmo dia, quando As Bodas acontecem.
Apesar de qualquer estranhamento entre eles (a ária da Condessa com sua criada-e-noiva-de-Fígaro Susanna em que trocam insultos de forma sarcástica é ótima, Via resti servita, madama brillante), Fígaro, Susanna e a Condessa Rosina, com suas felicidades ameaçadas pelo Conde, se juntam para fazer com que ele seja exposto e envergonhado por seus planos; que aceite o casamento dos dois para que a Condessa volte a ter seu marido, um homem que já fora romântico.
E essa era a polêmica envolvendo a história das Bodas. Na corte vienense, 3600 nobres moravam no palácio e eram assistidos por quase 60 mil servos, que moravam para fora “dos portões”. Colocar servos e nobres em posição de igualdade, ainda mais um conde, o mais alto grau da nobreza europeia, sendo exposto em suas questões morais por um casal de servos, ali no palco para todo mundo ver; bastante desafiador para a época.
Um parêntese para entender melhor a história: na Idade Média, existia uma lei — le droit du seigneur (“o direito do senhor”) — que dava ao senhor feudal o direito de tirar a virgindade da noiva na sua noite de núpcias (!) antes mesmo de ela se deitar com seu marido (!!). O Conde havia abolido esse direito quando do seu casamento com a Condessa Rosina, mas agora, com o seu interesse por Susanna, ele quer restaurá-lo.
Cherubino, personagem masculino interpretado por uma soprano (“en travesti” como se diz na dramaturgia, ou “breechers role” no vocabulário operístico), é o jovem galanteador da ópera e responsável por uma das árias mais famosas (e mais lindas): Voi che sapete che cosa è amor. Fica em apuros quando o Conde descobre o seu casinho com Barbarina, e sua situação no palácio fica ainda pior quando o Conde descobre sobre sua atração pela Condessa (sem contar que ele é sempre super amoroso com Susanna). Mas quando Cherubino descobre das investidas do Conde sobre Susanna, e para que a Condessa não saiba de nada, o nada-santo-Conde decide “perdoar” Cherubino dando-lhe um cargo num lugar bem longe do palácio. Cherubino terá de partir.
Mas todos os planos do Conde dão errado. Sua última cartada é obrigar Fígaro a se casar com uma mulher (a quem Fígaro deve dinheiro) que teria idade para ser sua mãe. Mas, surpresa: a dita cuja, a Marcellina, é a mãe de Fígaro. Assim, com a descoberta do fato surpreendente, os únicos inimigos de Fígaro, Marcellina-a-recalcada-que-queria-se-casar-com-ele e Dr. Bartolo-o-recalcado-que-queria-se-vingar-de-Fígaro-e-que-surprise–surprise–é-seu-pai, se transformam nos mais novos aliados de Fígaro. Apesar de suas falcatruas, Fígaro é um cara de sorte.
E como em outras óperas cômicas — seriam elas a versão dos filmes românticos de Hollywood? — o final é feliz: o Conde tem seu amor pela Condessa restabelecido, Susanna e Fígaro conseguem se casar com a benção do Conde (e ela segue pura, olha só) e todos os outros personagens participam da grande festa que são As Bodas de Fígaro.
Confira abaixo, via Spotify, nossas árias favoritas:
Parabéns pelo resumo, só há um detalhe a corrigir: o dueto em que as duas mulheres se estranham (“via, resti servita, madama brillante”), que não pode ser chamado de aria, pq. aria é sempre um solo vocal, não é entre Suzanna e a condessa, e sim, entre Suzanna e Marcellina. A condessa só aparece a partir do Segundo Ato, e a relação entre Suzanna e a condessa é sempre cordial.