Como Penso Como
Ao longo da história brasileira, muitos europeus que aqui chegavam nos chamavam de “macacos”. Para nós, civilização “inferior” e inferiorizada, tudo o que era bom vinha de fora, da terra deles, da Europa. Até que Oswald de Andrade, com seu Manifesto Antropofágico, lançado em 1928, se propôs a repensar a nossa dependência cultural.
Essa relação de amor e ódio-preconceito-vergonha pelo Brasil ainda é um sentimento muito presente em todos nós, brasileiros, — como já dizia Nelson Rodrigues lá nos anos 1950 , “o brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem” — o que se reflete na relação que temos com a comida, seja para com os ingredientes locais — só recentemente, as nossas heranças gastronômicas passaram a ser estudadas e valorizadas por grandes chefs — ou, pior, com os vinhos nacionais (esses ainda continuam no limbo da desvalorização e do desconhecimento; quem tem coragem de servir espumante nacional em jantar em casa, apesar da sua reconhecida qualidade, levanta a mão). Mas, a designer que se especializou em gastronomia Simone Mattar se propôs a questionar todos esses pré-conceitos ao resgatar a nossa bela e diversa identidade através de uma experiência gastronômica — uma das mais intelectualmente instigantes que já vivi — com música, teatro, cenografia, história, literatura, cultura popular brasileira e comida, comida conceitual, comida com história e histórias, histórias emocionantes, apresentadas impecavelmente, em doses certas, precisas como numa receita de sobremesa complicada. O Como Penso Como, nome do evento que já foi apresentado no Sesc Pompeia, em 2013, e, agora com harmonização de vinhos, na Casa Electrolux, em 2014 (ambos em São Paulo), me fez sair de lá com um amor pela nossa cultura que há tempos eu não sentia.
A pesquisa sobre a história da alimentação brasileira durou quatro anos e foi realizada por quatro historiadoras, que detectaram os momentos que marcaram a construção da identidade brasileira através dos alimentos. O resultado na boca nem sempre é o melhor, já que, aqui, a técnica, a apresentação (incrível, com todos as porcelanas e objetos desenhados e produzidos exclusivamente para cada prato), a tecnologia e o fator surpresa são os quesitos priorizados para contar a história. As participações imprescindíveis da idealizadora Simone e da sommelière Gabriele Monteleone (que fez uma harmonização utilizando apenas vinhos brasileiros de pequenos produtores da Região Sul) dão profundidade e sentido à experiência com seus relatos e explicações, estando sempre acessíveis para um bom papo. Informações como “a ‘engenharia’ da confecção do bolo de rolo poderia ter sido concebida por um designer”, “toda receita é imperativa”, “comida de rua é pátria” ou ainda “comemos apenas 4% das variedades de alimentos do mundo” intrigam e fazem pensar. A gente come, refletindo sobre a cultura.
Prontos para a viagem que se inicia? (ATENÇÃO: SPOILERS! Se você ainda não foi ao Como Penso Como e quiser ser surpreendido, deixe esta página AGORA):
1. GRANDE PODER
A mandioca (ou aipim ou macaxeira ou maniva) é a maior contribuição indígena para a culinária brasileira. Com a polpa da mandioca, a Simone fez essa luminária comestível — e, olha, é gostosa — através do processo milenar da filigrana em papel. O prato vem acompanhado de um croquete de tacacá (o caldinho temperado feito com tucupi e folhas de jambu) com camarão seco, pato curado por vinte dias — com textura de presunto cru — no molho arubé (que é uma espécie de mostarda indígena; o “Knorr” indígena, nas palavras da Simone) com pérolas grandes de amido de tapioca (tipo um sagu grande). E não deixe de escutar a música Grande Poder, da Comadre Fulôzinha. Ela é tocada e cantada ao vivo pelos atores antes de a refeição ser servida. Presente atenção nos sons das palavras: a música é linda.
2. CABEÇA DO BISPO
Apesar de ser apenas um pâté com torradinha (impossível de imaginar pela foto), é o prato mais estranho de se comer ever. Foi inspirado no Manifesto Antropofágico do Oswald de Andrade, de 1928, que se inspirou na história do Bispo Pero Fernandes Sardinha, que foi comido — de verdade — pelo índios Caetés, no século 16. As cabeças do Bispo Sardinha, em dois tamanhos e prateadas como a sardinha, são um pâté de… sardinha, em cima de pão crocante cinza impresso com esqueletos de sardinha que você NUNCA iria imaginar que é pão. Além disso, vem o texto do Manifesto Antropofágico impresso num papel de açaí. Ou seja, você come — literalmente — o Manifesto, que “comeu” o bispo, e come o bispo que foi comido pelos índios de novo. Antropofagia em todos os sentidos na veia. Genial, de verdade.
3. SONHO REAL
O baile da Ilha Fiscal foi o único — e mais extravagante — baile promovido pela monarquia brasileira — com dinheiro público —, tendo Dom Pedro II como Imperador, apenas seis dias antes da Proclamação da República, em 1889 (800 quilos de camarão, 500 perus, 65 faisões, 1200 latas de aspargos para cinco mil pessoas são alguns dos números oficiais). Aqui, a Simone serve esse sonho transgressor com um recheio salgado, de espuma de siri e maionese de iquiriba (semente de uma árvore do Norte do Brasil). Sobre o sonho, acomodado num travesseiro de porcelana em alusão à mantelaria real portuguesa, um saboroso pó de cebola e uma coroa crocante feita de tomate e alho. É tão bom que eu comeria uns três. O baile da Ilha Fiscal, último evento da monarquia brasileira, tinha como sonho reforçar o poder do Império contra as conspirações republicanas. Alguns dias depois, D. Pedro II seria exilado em Paris, longe do país que tanto amava. Um sonho que não se provou nada doce.
4. OLÓDÙMARÈ
Na religião Yorùbá, base da Umbanda e do Candomblé brasileiros, Olódùmarè é o Ser Supremo que criou o Universo e o homem. Nesta homenagem às religiões de matriz africana, que têm como prática ritualística a oferta de comida aos orixás, comida essa que simboliza a força vital, a energia máxima e que obedece prescrições complexas estabelecidas ao longo do tempo para levar o axé, Simone nos oferece uma esfera de “cristal” comestível que contém uma fumaça aromatizante de cravo, canela e casca de obi (a semente sagrada). Neste ar “preso” estão todas as preces para encontrar a paz (é muito poético). Já os três patuás de papel comestível (farinha de arroz e leite de coco), numa textura que lembra o mochi (bolinho puxento de arroz japonês), possuem três recheios distintos de acordo com os gostos de cada orixá: de cará (inhame), peixe e flor de alho para Iemanjá; vinho de palma e quiabo para Ogum; e galo capão e pimenta biquinho para Exu. Os três patuás deitam sobre uma caminha de vatapá e uma deliciosa farofa de acarajé se espalha pelo prato.
5. PERIPÉCIAS DE BODE NO REINO DOS BACANAS
“O sertanejo é, antes de tudo, um forte”, escreveu Euclides da Cunha n’Os Sertões. Para homenagear a resistência dos cangaceiros no sertão nordestino e os alimentos que conseguem sobreviver apesar das adversidades, Simone propõe uma marmita de alumínio em forma de mandacaru (um cacto que chega a atingir cinco metros de altura, que nos remete ao Abaporu, pintura de Tarsila do Amaral) feita por um dos poucos artesãos que ainda dominam a técnica no cinzelado. Dentro dele, só ingredientes do Nordeste: paleta de cordeiro glaceada, jerimum (abóbora) e arroz cateto feito com água de abóbora, caldo de boi, manteiga de garrafa e queijo meia cura. No prato, que é um mármore cor de carne cujos veios lembram a carne de sol, vão a paçoca de pilão (carne seca e farinha de mandioca com manteiga de garrafa), gelatina de figo-da-índia, bolo de amendoim e beldroega, uma planta rasteira.
6. OSSOS DO OFÍCIO
Artesãs da cidade de Jardim, no estado de Mato Grosso do Sul, esculpem desenhos em ossos de vaca, que fazem lembrar trabalhos em marfim. É em homenagem a essas mulheres, a barriga de porco com pele pururucada sobre purée de cítricos, picles de cenoura e pepino (sabores azedinhos para contrapor com a gordura do porco) e miniflores comestíveis.
7. A PREÇO DE BANANA
O Brasil “vendido a preço de ouro”, a “República da Banana”, a imagem estereotipada do Brasil representada pelos balangandãs que a cantora portuguesa Carmem Miranda tão bem difundiu mundo afora. Na primeira sobremesa, a banana-“ouro” dourada sobre uma escultura de porcelana é uma mousse de chocolate branco caramelizado com recheio de doce de banana e capa de canela sobre uma fina fatia de queijo afinada pelo Mestre Queijeiro.
8. CONFLITO: FESTA DO DIVINO
A influência da Igreja Católica na alimentação do brasileira é representada através da Festa do Divino Espírito Santo (festa que se iniciou em Portugal no século 14, extremamente difundida no Brasil) que, por sua vez, é representado pela pomba. Símbolo da paz, a pomba, impressa em chocolate no prato de pedra (!), está rodeada por nomes de lugares onde estão ocorrendo conflitos e guerras, seja nos países onde a religião é causa de conflitos, seja nas periferias das nossas grandes cidades (um rap abre a segunda sobremesa). O doce, em formato de fogueira, é uma mousse de chocolate com pimenta e creme de cupuaçu sobre um crocante de araçá (uma frutinha que faz parte da família da jabuticaba). Depois de comer o doce, a Simone propõe que lambamos o chocolate do prato, apagando todos os conflitos. Pra comer sem compostura.
9. TABULEIRO BRASILEIRO
A comida de rua no Brasil tem origem nos tabuleiros que as negras escravas usavam para vender doces e frutas nas ruas. E a performance das atrizes é um dos momentos mais lindos da noite. No tabuleiro vem uma linda renda de graviola comestível (as negras cobriam seus quitutes com tecido), uma caixinha feita de massa de tartelette recheada com mousse de paçoca envolta com papel de banana. E ainda acompanha um minicopo americano com um cafezinho quentinho.
PRA CONCLUIR
Só sei que eu saí emocionado do Como Penso Como. Com uma estranha saudade de lugares a que nunca fui. Da musicalidade e das sanfonas dos repentistas nordestinos, dos sabores seculares dos ingredientes utilizados pelos povos da Região Norte, dos vinhos dos pequenos produtores da campanha gaúcha, do Rio cenográfico e colorido em Technicolor da Carmem Miranda, e, principalmente, com saudades do meu orgulho de ser brasileiro, que se reacendeu através da comida, da comida deste evento lindo, quase espiritual. Obrigado, Simone Mattar.