Milk
No começo do filme chocam as cenas reais, de apenas 30 anos atrás, de homossexuais bem vestidos e extremamente constrangidos sendo presos em bares gays através das frequentes batidas policiais nos Estados Unidos da América — país em que palavras como liberdade, igualdade e democracia já fazem parte dos valores do Estado desde a Declaração da Independência, de 1776.
Assim como outros filmes mais autorais e menos comerciais que fizeram o Oscar 2009, Milk leva a assinatura de Gus Van Sant, diretor gay assumido que sempre esteve em destaque nos festivais de cinema independente. Mas Milk não é um filme autoral. Sem grandes ousadias cinematográficas, Gus Van Sant se preocupou apenas em contar bem a história de Harvey Milk, o primeiro gay assumido a conquistar um cargo público na história dos Estados Unidos — e também continuou a tradição hollywoodiana de atores heterossexuais galãs para interpretar papéis gays; depois de Jake Gyllenhall e Heath Ledger, em Brokeback Mountain; Tom Hanks e Antonio Banderas, em Philadelphia; Rodrigo Santoro, Jim Carrey e Ethan McGregor, em I Love You Philip Morris. E consegue: o elenco (de Sean Penn a Anne Kronenberg, passando por Josh Brolin, James Franco — sempre lindo, até de cabelo cacheado — e Diego Luna – quase irreconhecível), o figurino, a direção, a trilha sonora e as cenas reais (das passeatas e das declarações fundamentalistas da imaculada homofóbica Anyta Bryant*) dão legitimidade à biografia, conseguindo recriar de maneira impecável a vibe da São Francisco antes da epidemia da AIDS, quando a Castro ainda era um bairro alternativo — e barato —, onde gays de toda a América conseguiam viver com mais liberdade.
O olhar mais “livre” de Gus Van Sant talvez se expresse na decisão de mostrar um “hero” humano e com defeitos (algo raro na tradição maniqueísta do cinema norte-americano). O filme mostra como Harvey se utiliza da imprensa para conquistar o que quer, como deixa seus relacionamentos em segundo plano, como está disposto a negociar votos com outros supervisores, e como — assim como todos nós — pode voltar atrás em alguns valores, sendo considerado hipócrita.
Quem deve assistir Milk? Os que acompanham a carreira desse grande ator que é Sean Penn, mas principalmente, os gays da geração pós-Stonewall (eu incluso) que não sabem como era a vida dos nossos semelhantes em um passado não tão distante e que não conhecem aqueles que lutaram e sofreram para que pudéssemos ser mais respeitados e tivéssemos a liberdade da qual desfrutamos hoje.
* Ao final do filme, são mostradas fotos acompanhadas de legendas contando o que aconteceu com cada um dos companheiros de Harvey e de seu assassino, Daniel White. Mas, o filme não mostra o que aconteceu com Anita Bryant. Para quem quiser saber, o Blog do Tony Goes fez essa pesquisa e publicou a resposta aqui.
São Paulo, 1 de março de 2009.