A Velha, dirigida por Bob Wilson
Tenho muitas dúvidas quanto à capacidade de uma peça que se utiliza de uma linguagem circense, com uma história-não-história-comédia (tragédia?), absurdista-surrealista com frases que se repetem ad infinitum, que envolve fome, morte-assassinato (ou apenas um pesadelo?), sem personagens (seriam A e B a mesma pessoa, o escritor em apuros?), que nos remete à Beckett, Ionesco ou Kafka (não tente entender a história), se fazer gostar pelo público de forma tão unânime. Mas parece que a última obra do dramaturgo norte-americano Robert Wilson, ou just Bob Wilson, conseguiu a proeza, não só no Velho Mundo, como também no Brasil.
Não há como não se deslumbar pela beleza plástica e a sofisticação da peça The Old Woman (A Velha, em português), baseado na única novela (de 1939) do poeta e dramaturgo absurdista russo Daniil Kharms, ou Daniil Ivánovitch Iuvatchóv, seu nome verdadeiro, que a escreveu durante a Rússia stalinista. Se você algum dia tentou “controlar a luz”, essa matéria-imaterial que se espalha pelos ambientes na velocidade dela mesma sem pedir permissão, seja ao tentar iluminar um objeto para ser fotografado ou para dar aquele efeito na sala durante um jantar — SEM conseguir o efeito desejado —, vai entender o preciosismo e o rigor extremo e absoluto do trabalho do multitalento de Robert Wilson.
A luz dá o tom: encanta, colore (sem a luz, todo o cenário da peça seria simplesmente branco) e transforma o palco, os objetos e os atores, dando profundidades infinitas. Bob Wilson é conhecido por deixar um ator parado durante horas no palco, imóvel como uma escultura, para afinar a luz de uma determinada cena e, especialmente nesta peça, antes mesmo de pensar o texto, foi o trabalho de iluminação que deu início ao projeto.
Willem Dafoe e Mikhail Baryshnikov possuem uma sinergia e carisma incríveis no palco, apesar de cumprir com o rigor dos movimentos (correm, pulam, dançam, maquiados como palhaços), do texto (em inglês e em russo) e até mesmo da voz (Baryshnikov em vários momentos se utiliza de um falsete para contrapor à voz grave de Dafoe), exigidos pelo diretor.
E a graça vem do absurdo da realidade surreal: as SEIS velhas que caem do terraço e se espatifam no chão, uma após a outra, pela curiosidade de ver a velha que havia caído anteriormente; a discussão que se inicia e se alastra pelo bairro porque o personagem não sabe mais se o sete vem antes do oito ou vice-versa; ou ainda o operador de milagres que não opera nenhum milagre em toda a sua vida, nem mesmo o de reverter a expulsão pelo proprietário de seu próprio apartamento. E a sensação, ao sair do teatro, é uma mistura de prazer — por ter assistido a uma peça única com grandes nomes das artes no mundo (da dança, do cinema e do teatro) — com estranhamento — pelos mesmos motivos.
Olha,
eu me apaixonei. Não sei se é porque juntava Dafoe, Misha e o Bob
Wilson, que eu tanto ouvia falar e tanto já esteve presente em minhas
pesquisas de referência de iluminação e cenário, ou porque era tão
unanimidade que tudo aquilo era bom que você já fica predisposto a
gostar. Mas confesso que por não ser uma frequentadora assídua e não
entender muito sobre o teatro e todas as suas vertentes, a princípio
estranhei principalmente a repetição. Mas uma amiga postou uma fala do
Bob Wilson que me fez pensar bem sobre o caso e achar que a repetição
foi muito bem colocada. É ela: “Acho que as palavras são
multifacetadas. Você pode falar um texto sobre fome de várias formas, o
que assume significados distintos. Acredito que a repetição, em vez de
esvaziar, inunda, permite muitas possibilidades a partir de um mesmo
ponto de partida”.
Enfim,
a forma, não temos dúvida que é de uma beleza excepcional. Quanto ao
conteúdo, não conheço a obra original do Daniil e não sei o que está
presente nela e o que foi adaptação, mas achei de uma genialidade
tremenda vários trechos, como sobre as 6 velhas que caem, sobre o
operador de milagres que não opera milagres ou sobre o ruivo que não
tinha cabelo e não tinha mais nada, logo sequer existia. E acho que a
repetição faz você pensar mais sobre elas do que se fossem ditas apenas
uma vez. Mas pode ser só porque eu tenho uma paixonite pelo absurdo (: