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Bélgica: De capital do Reino Franco à capital da Europa, como entender a crise entre francófonos e neerlandófonos?

O Arco do Triunfo no Parc Cinquantenaire em Bruxelas, o parque construído em 1880 em comemoração aos 50 anos da independência da Bélgica em relação aos Países Baixos. Imagem: Shoichi Iwashita

“Se você acha que entendeu algo sobre a Bélgica, é porque entendeu mal”, dizem por aqui. A bandeira nacional deste pequeno país tem as cores da vizinha Alemanha; os idiomas oficiais são o alemão, o francês e o flamengo/holandês; e, apenas nos últimos seis séculos, o território pertenceu ao Ducado da Borgonha (sim, a região dos grandes vinhos franceses), à Espanha, ao Império Austro-húngaro, à França, sofreu ocupação alemã durante as duas grandes guerras, além de, por duas vezes, ter formado um só país com a Holanda e Luxemburgo. É muita informação, são muitas influências, mas só estamos começando nossa jornada.

FRANCÓFONOS E NEERLANDÓFONOS, CATÓLICOS E PROTESTANTES: ANTES, SEPARADOS PELA RELIGIÃO; AGORA, PELO IDIOMA

Charles I, o primeiro rei da Espanha, nascido em Flandres, herdou os Países Baixos dos duques da Borgonha, os antigos donos da região. Ele não conseguiu conter o avanço do protestantismo onde é hoje a Holanda, mas a Bélgica segue católica. O retrato do imperador foi pintado por Juan Pantoja de la Cruz, por volta de 1605, uma cópia do quadro de Tiziano. Imagem: Reprodução.

Desde a conversão do rei franco Clóvis ao catolicismo (o primeiro rei “bárbaro” a se tornar cristão em 496), os Países Baixos — que compreendem o que são hoje a Holanda, a Bélgica, Luxemburgo e partes da França e Alemanha — sempre foram católicos; e, no século 16, o país pertencia aos espanhóis-católicos-radicais.

Com a Reforma Protestante nos anos 1510, no entanto, a região onde está hoje a Holanda se torna calvinista. E essa incompatibilidade religiosa faz com que a parte sul dos Países Baixos — hoje, a Bélgica, que se manteve católica — se separe do resto do país; tanto em 1588 quanto em 1830. Unidos pelo catolicismo — única religião permitida entre os séculos 16 e 18, sob pena de morte —, francófonos e neerlandófonos formam a nação belga.

Mas, se antes a religião unia esses dois povos de origens e identidades distintas, desde a independência da Holanda em 1830, a diferença linguística foi se tornando questão política das mais polêmicas, inflamada pela desigualdade econômica cada vez mais acentuada entre as duas regiões.

A Valônia francófona (Wallonie, em francês) sempre foi a mais rica, mas a Flandres neerlandófona (Vlaanderen, em flamengo) virou o jogo depois da Segunda Guerra Mundial. E a ascensão da direita nacionalista nos últimos 30 anos (no mundo e também na Bélgica) fez surgir um movimento separatista liderado por Flandres. Não ouse falar francês em muitas das cidades flamengas: apesar de ser um dos idiomas previstos na Constituição federal, na prática, o idioma de Voltaire só pode ser falado em Bruxelas, na Valônia ou em algum enclave francófono em Flandres.

Cada vez mais dividido — e já quase ingovernável por conta de um sistema político que entrou em vigor entre as décadas de 1970 e 2000; saiba mais no próximo tópico —, a Bélgica corre o risco de desaparecer. Mas formaria Flandres um país independente, o que seria dificilmente aceito pela União Europeia? Ou se tornaria parte da Holanda enquanto a Valônia seria absorvida pela França, e a comunidade germanófona, pela Alemanha? Mas o que aconteceria com Bruxelas-Capital, oficialmente bilíngue — mas de maioria francófona —, que está inteiramente dentro região flamenga-neerlandófona?

BRUXELAS: CAPITAL DA BÉLGICA E DA EUROPA, UM MILHÃO DE HABITANTES E CINCO PARLAMENTOS

Uma das mais belas praças da Europa, na ricamente ornamentada Grand Place / Grote Markt, muitos protestantes foram queimados ou decapitados pela Inquisição, incluindo os dois primeiros mártires da Reforma, em 1523. Imagem: Shoichi Iwashita

A Bélgica inteira tem 11 milhões de habitantes e, monarquia constitucional-parlamentarista que é, tem o Poder Executivo formado pelo rei, o primeiro-ministro e os ministros.  Mas a “normalidade” acaba por aqui.

Porque nesse país pouco maior que o estado brasileiro de Alagoas existem:

  • três regiões: Flandres ao norte, a Valônia ao sul, e Bruxelas-Capital, inteiramente dentro do território flamengo;
  • três comunidades políticas organizadas por identidade linguística: neerlandófonos, francófonos e germanófonos; e
  • quatro regiões linguísticas oficiais: os neerlandófonos em Flandres, os francófonos na Valônia, o enclave germanófono na Valônia, além de Bruxelas-Capital, oficialmente bilíngue.

Sendo que o Poder Legislativo é representado por seis parlamentos: o Parlamento nacional federal, bicameral, formado pela câmara dos representantes e o senado; os três parlamentos regionais, de Flandres, da Valônia e de Bruxelas-Capital; e os três parlamentos das comunidades francófona, neerlandófona e germanófona. Com um problema: cada região legisla com tantos poderes quanto o governo central. É como se houvesse quatro governos paralelos na Bélgica.

Mas por que seis e não sete parlamentos? Por que, enquanto o parlamento da região da Valônia é separada do parlamento da comunidade francófona, os parlamentos da região de Flandres e da comunidade neerlandófona estão reunidos em uma instituição só, em Bruxelas (sempre mais práticos esses germânicos…). Já a comunidade germanófona não forma uma região oficial mas tem representantes no Parlamento da Valônia.

Bruxelas é ainda a capital de Flandres (apesar de Bruxelas ser uma região independente e ter maioria francófona!) e a capital de facto da União Europeia; aqui fica um dos três Parlamentos Europeus (os outros dois estão em Estrasburgo e Luxemburgo).

Ou seja, a capital da Bélgica abriga cinco parlamentos: o Parlamento Europeu, o Parlamento Federal belga, o parlamento de Bruxelas-Capital, o parlamento da região de Flandres e da comunidade neerlandófona, e o parlamento da comunidade francófona. Só dois parlamentos ficam fora: o da Valônia, que fica em Namur, sua capital, e o da comunidade germanófona, que fica em Eupen.

Com diferentes atribuições, eles governam, ao mesmo tempo, todos os aspectos da vida da população, das políticas de moradia, educação e saúde públicas à cobrança de impostos. Ou seja, um cidadão belga tem sua vida influenciada pelas decisões de seis diferentes parlamentos, dependendo do que ele precisar em termos de serviços públicos e de onde ele estiver no país.

O mais intrigante é que um belga francófono pode passar apuros dentro de seu próprio país, caso esteja, por exemplo, em Flandres, precisar resolver algo na prefeitura, e não falar flamengo (e é bem mais comum encontrar flamengos que falam também francês que valões que falem flamengo, já que os valões quando decidem estudar uma segunda língua, preferem aprender inglês, o que azeda um pouco mais a relação entre eles…).

Mas o problema pode ser ainda mais complexo. Está comigo ainda?

A REVANCHE FLAMENGA E O HINO NACIONAL CANTADO DE QUATRO FORMAS DIFERENTES

Se a bandeira da Bélgica é geométrica e a de Bruxelas tem uma íris representada com um coração, as bandeiras das outras duas regiões do país ostentam animais: um leão preto no caso de Flandres e um galo vermelho para a Valônia. Imagem: Berre Ruijsink via Flickr

Tudo seria talvez mais simples se houvesse uma linha bem definida sem francófonos em Flandres nem neerlandófonos na Valônia. Mas não é assim. No entorno da divisa entre as duas regiões, tanto pra lá quanto pra cá, existem vários enclaves de comunidades com uma população majoritariamente falante do idioma “inimigo” (existe até um enclave flamengo na Holanda, Baarle, que pertence à Bélgica; o quão louco pode ser isso?). Mas vamos tentar entender as origens disso.

Quando Napoleão Bonaparte invade e anexa os Países Baixos à França no começo dos anos 1790, o general-devenu-imperador institucionaliza o idioma francês como língua administrativa, de forma a unificar o império, contribuindo para o declínio tanto do valão (que praticamente desapareceu) quanto do flamengo, que resistiu.

Depois da queda de Napoleão na Batalha de Waterloo (praticamente do lado de Bruxelas), os belgas, ainda apoiados pela França, se rebelam contra o rei holandês-protestante Willem van Oranje-Nassau (ou em português, Guilherme I). E a história se repete com a independência do país em 1830. Apesar de a maioria da população (até hoje) ser flamenga, só o francês seria considerado idioma oficial; ou seja, seria o idioma dos tribunais, do exército, da administração pública, da cultura, da educação, da imprensa, do próprio hino nacional, La Brabançonne. O flamand só seria reconhecido como língua oficial do país 70 anos depois, em 1898, e o hino só ganharia versões em holandês e alemão em 1921.

Falar francês se torna essencial para progredir socialmente, já que a Valônia francófona do começo do século 19 é também um dos berços da Revolução Industrial, uma das mais dinâmicas do planeta, superada apenas pela Inglaterra. A partir de 1880, constata-se uma verdadeira explosão do conhecimento do idioma francês entre os neerlandófonos e muitos flamengos deixam de passar o idioma para seus filhos, que convivem com um sentimento desconfortável de exclusão e inferioridade, alimentada pela força da economia da Valônia por todo o século 19 e no período entreguerras. Soldados flamengos perdiam a vida nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial por não entenderem as ordens dos seus superiores francófonos.

Mas depois do fim da Segunda Guerra Mundial, Flandres se desenvolve e deixa ser a periferia cultural-econômica do país para se tornar o motor da economia belga, a começar pelas atividades do porto de Antuérpia, que se manteve intacta, diferentemente dos grandes portos vizinhos de outrora — Le Havre e Hamburgo —, destruídos pelos aliados. Já a economia da Valônia baseada amplamente nas grandes indústrias do carvão e do aço perde competitividade e desmorona.

O que vemos a partir daí é uma Flandres cosmopolita, multilíngue e com uma política econômica regional que conquista os mercados com o seu dinamismo — e cada vez mais afirmativa de sua identidade flamenga —; com um sistema educacional mais bem sucedido; uma taxa de desemprego baixa, de 4% (contra 9,6% na Valônia); o dobro do PIB (€ 171 bilhões contra € 74 bilhões)… E que, uma vez que os impostos federais são distribuídos, passa a enxergar a Valônia como um entrave ao seu desenvolvimento. Talvez, por essa tensão, os censos linguísticos são proibidos por lei na Bélgica desde 1961 (e não é particular ver isso em um país democrático?).

Além das versões do hino nacional real-oficial em francês, em flamengo e em alemão, existe hoje ainda uma quarta versão (não-oficial) cantada nos três idiomas, misturando uma linha de cada. E, apesar da maioria flamenga, mais de 90% das declarações de imposto de renda ainda hoje são feitas em francês.

A INFLUÊNCIA BELGA NA EUROPA E NO MUNDO

Um céu com nuvens foi um dos temos que o artista surrealista belga René Magritte pintou muitas vezes, dando sempre o nome de A Maldição (La Malédiction). Imagem: Shoichi Iwashita

Berço da Revolução Industrial e do Art Nouveau na arquitetura, terra de René Magritte, de Jacques Brel, de Stromae, dos biscoitos speculoos, do waffle, dos mexilhões (moules), das milhares de cervejas que se desenvolveram no coração das abadias ao longo dos milênios, das batatas fritas mais amadas do mundo (atenção, veganos e vegetarianos, já que elas são fritas em banha de porco), do chocolate que rivaliza com o suíço, da receita de mayonnaise controlada por lei, e dos quadrinhos, sendo os mais famosos Tin Tin e os Smurfs, em território belga está também a origem da França e, em grande parte, do que seria a Europa.

Nem os visigodos, nem os lombardos, nem os saxões, tiveram o impacto na formação da Europa como os francos, os “bárbaros” conhecidos pelos cabelos longos e fundadores do que viriam a ser a França e a Alemanha. Foi entre os rios Scheldt e o Meuse, dois rios que cortam a Bélgica, que eles se estabeleceram no século 4 quando logo se tornaram foederati romanos (tribos associadas a Roma por foedus, tratado, que não tinham foro nem de colônia nem de cidadania romana).

Com capital em Tournai (quase divisa com a França), a Bélgica foi o coração do primeiro reino franco, o da dinastia merovíngia, que governaria a região por dois séculos após a queda do Império Romano. E mesmo com a transferência da capital do reino para Paris, o vale do Meuse seguiu como o centro político e econômico da Dinastia Carolíngia, inaugurada por Carlos Magno no século 8, que é considerada a primeira fase da história do Sacro Império Romano, que durou até 1806.

Carlos 1 da Espanha (e Carlos 5 do Sacro Império Romano), o primeiro monarca a governar Castela, Leão e Aragão ao mesmo tempo, e por isso considerado o primeiro rei da Espanha na história — e que herdou os Países Baixos dos duques da Borgonha — também era belga. Nasceu em Ghent, em Flandres, e se considerava bourguignon e flamengo.

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Shoichi Iwashita

Compulsivo por informação e colecionador de moleskines com anotações de viagens e restaurantes, Shoichi Iwashita se dedica a compartilhar seu repertório através das matérias que escreve para a Simonde e revistas como Robb Report Brasil, TOP Destinos, The Traveller, Luxury Travel e Unquiet.

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