O que você está buscando?

Soeta: alta gastronomia fora do eixo Rio-São Paulo

Barbara e Pablo se conheceram no El Bulli, eleito o melhor restaurante do mundo em quase todos os anos da década de 2000. Tiveram acesso aos melhores ingredientes; (ao mais famoso mentor, Ferran Adrià); faziam parte da melhor brigada e serviam os melhores clientes: iniciados na gastronomia que estavam dispostos a grandes sacrifícios para experimentar suas criações. Na penúltima temporada do Bulli, em 2009, porém, Barbara convidou Pablo para participar do restaurante de gastronomia contemporânea que pretendia montar no Brasil. Mais especificamente em Vitória, no Espírito Santo. Terra natal de Barbara e da moqueca capixaba.

A atmosfera não poderia ser mais diversa. Pablo aceitou, apesar de não conhecer o país. Nos primeiros seis meses, a frustração foi total. “Nem garçons nem clientes jamais haviam ouvido falar em menu-degustação. Perguntavam o tamanho do menu, e quando ouviam que era de ‘15 pratos’, se assustavam. Hoje, pensando bem, foi realmente uma loucura!”, se diverte o chef Pablo Pavón. Mas, apesar de o restaurante já ter sua clientela cativa, especialmente entre turistas de negócios e artistas que passam pela cidade – o restaurante é presença constante nas colunas sociais capixabas -, ainda é nítida a resistência e a insegurança por parte dos clientes em aceitar algumas criações dos chefs.

O bacalhau talvez seja o caso mais emblemático, considerando que, em Vitória, cidade à beira-mar, as pessoas comem muito peixes e frutos do mar. Talvez, por que o peixe de águas frias seja sempre servido fresco (sem nunca ter passado pelo sal), embalado a vácuo, cozido a 7o graus por cinco minutos, tostado com um maçarico e servido com pele. Ou seja, completamente diferente daquilo a que a maioria das pessoas está habituada. “Muita gente não gosta. Uma senhora me ligou na semana passada e disse que foi o pior bacalhau que ela já comeu na vida”, conta Pablo. Por outro lado, muitos apreciam a maneira como ele é servido e já são mais de 15 criações utilizando o peixe, que, junto com o atum, o salmão e o cherne, formam o quarteto de peixes sempre presentes no menu.

A falta de matérias-primas “nobres” como foie gras  e trufas ou “em voga” como o pirarucu, ocasionada pela cara e difícil logística, também é sentida pela dupla de chefs, acostumados a utilizá-los nos restaurantes em que trabalharam e que estão sempre presentes nos eventos gastronômicos dos quais participam. “Não dá para servir foie gras se ele não estiver excelente. E, quando ele vem de avião de São Paulo, ele não chega no seu melhor estado”, diz Pablo. Atualmente, os chefs  pesquisam uma fazenda de patos em Linhares, ao norte do estado e, talvez, o fígado gordo seja uma possibilidade futura.

TERROIR

Com o tempo, outros fornecedores espírito-santenses foram surgindo e, hoje, são os próprios chefs os engajados em encontrar os melhores produtos do estado. “No começo a gente tinha essa proposta de valorizar o produto brasileiro, ficamos encantados com muitos produtos que a gente via nos congressos Brasil afora, mas decidimos trabalhar com o que a gente tinha aqui. Abrir os olhos mesmo para os produtos da região”, conta a chef Bárbara Verzola.  Os camarões de água-doce vêm de São Domingos; os cogumelos selvagens – criados por um agricultor que morou cinco anos na Espanha e do qual o Soeta é o único comprador capixaba – vêm de Domingos Martins (toda a produção é vendida exclusivamente para São Paulo); e as macadâmias vêm de São Mateus, extremo norte do Espírito Santo (o ES é o segundo maior produtor do país, mas toda a produção é exportada). E muitas propostas vêm surgindo justamente dessa aproximação entre Bárbara e Pablo e os fornecedores. Cada vez que aparece uma nova matéria-prima, eles vão até o fornecedor conhecer o potencial do produto e começam uma extensa pesquisa: “Mas, diferentemente do que as pessoas acham, testamos apenas os sabores, a técnica é apenas uma forma de valorizar o produto; ela já faz parte da gente”, diz Barbara.

Apesar da aura romântica do contato próximo com os fornecedores em um estado rico em bons produtos, nem sempre as coisas são fáceis, por conta da pequena quantidade que compram semanalmente e da necessidade de produtos sempre frescos. “Ficamos empolgadíssimos quando encontramos um cordeiro ótimo aqui no Estado, mas ele entregou na primeira semana, entregou na segunda… E sumiu na terceira! A gente ficou desesperado, o prato estava no cardápio”, conta Bárbara. E a chef continua: “Quando encontramos o produtor de macadâmias, ele disse que não tinha nenhum interesse em vender para nós, já que ele exporta 100% da produção. Ele e o produtor de cogumelos só nos vendem porque eles gostam da gente… Tenta encontrar macadâmia aqui no Espírito Santo, não tem em nenhum supermercado! O fornecedor da tilápia, que vem de Colatina, a partir da qual a gente prepara uma pururuca, tem semana que liga dizendo que está com preguiça de entregar. E lá vai o Pablo, viajar três horas, para buscar o peixe.”

Mas, Barbara e Pablo, junto com a sócia Marly Farah (ex-Locanda della Mimosa) têm conseguido contornar as dificuldades de produtos, mão-de-obra e clientela com espírito criativo, senso de oportunidade e aprendizado constante. Quando abriram, há exatos dois anos, começaram com um cardápio mais tradicional, mais adaptado ao gosto local e, aos poucos, introduziram criações mais ousadas. A equipe inicial que, já bem treinada, continua na casa, recebeu o reforço de três ex-funcionários do El Bulli que vieram trabalhar no Soeta depois do fechamento do restaurante. O cardápio, que tem como clássicos a salada morna de frutos do mar, o espaguete com manteiga defumada e o nhoque de polenta com café (prato do El Bulli criado na estação em que Barbara e Pablo trabalhavam e que “faz parte da história dos dois”, diz ela), em vez de mudar completamente todos os meses (“o que era um enorme desafio”) hoje, muda a cada três meses. Apenas o menu-degustação, formado pela deliciosa jornada de 17 pratos, é renovado por completo todos os meses.

Soeta quer dizer “coruja” em dialeto vêneto e era assim que o pai de Bárbara a chamava quando pequena. E a corujinha está estampada no cardápio e em algumas das belíssimas porcelanas criadas especialmente para o restaurante pelo mestre espanhol Luesma Vega.

VITÓRIA DO ESPÍRITO SANTO

Vitória é uma cidade onde é muito tranquilo sair para jantar num sábado à noite, por exemplo. Os restaurantes geralmente nunca ficam lotados – diferentemente dos bares –, e apesar de contar com algumas boas opções de restaurantes, a cidade ainda é um mercado incipiente nos quesitos boa comida, bom serviço e, principalmente, constância na qualidade; o que deve mudar com as excelentes perspectivas econômicas dos próximos anos. Nesse cenário, a comida surpreendente, o serviço atencioso e o preço mais do que honesto (R$ 158 pelo menu-degustação), fazem valer uma viagem à essa ilha que, além de capital do Estado, é a terra da corujinha Soeta.

[nggallery id=21]

Vitória, dezembro de 2011.  

Shoichi Iwashita

Compulsivo por informação e colecionador de moleskines com anotações de viagens e restaurantes, Shoichi Iwashita se dedica a compartilhar seu repertório através das matérias que escreve para a Simonde e revistas como Robb Report Brasil, TOP Destinos, The Traveller, Luxury Travel e Unquiet.

Este post ainda não tem comentários.
Deixe um comentário
Seu endereço de email não será publicado junto com o comentário.