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Spotlight, quando gente de bem defende o indefensável em nome da religião

A minha vontade hoje era escrever “Apenas assistam a este filme que já é um dos melhores de 2016” e fechar a matéria com um ponto final. Em um momento quando negros, mulheres, transexuais, entre outras tantas vítimas de “invisíveis” injustiças sociais passam a ter suas vozes ouvidas, o filme Spotlight  vem tocar numa ferida sistêmica e nos fazer relembrar um escândalo que ficou nas nossas memórias como mais uma série de tristes manchetes. O filme de Tom McCarthy vem colocar rostos, nomes e mostrar os bastidores — e as dificuldades — da investigação do maior jornal de Boston, uma rica cidade dos Estados Unidos onde a Igreja Católica detém poder em todas as esferas da sociedade (da política à educação, passando pela justiça e pela vida da maioria de seus habitantes), que trouxe à tona o abuso sexual e sistemático de milhares de crianças por centenas de padres COM A CONIVÊNCIA da Igreja Católica. E não estamos falando dos anos 1950; a história aconteceu entre 2001 e 2002. Ou seja, ontem.

Spotlight  tem roteiro e interpretações impecáveis. Todas as complexas nuances que envolvem o tema estão cobertas: o retrato das vítimas e as consequências irreversíveis para suas vidas (do gay que descobre sua homossexualidade através de relações sexuais com um padre ao garoto hetero bonito que sofreu abuso e carrega nos braços as picadas para suportar o passado); as descobertas de um psicólogo que estudou os padres agressores e que apresenta dados e padrões alarmantes — dos sacerdotes e do perfil das vítimas — para os jornalistas; a discussão sobre o celibato na igreja; o padre que repetia os abusos sofridos por ele quando criança; e, principalmente, o descaso com que a própria imprensa e toda a sociedade lidou com o fato durante décadas para proteger a Igreja; de professores, senhoras católicas mães de família, autoridades religiosas, jornalistas, advogados e policiais. Pessoas de bem defendendo o indefensável em nome da religião.

Além de retratar a vida dos jornalistas no trabalho e como são feitas as decisões editoriais, outra discussão que Spotlight levanta é sobre a qualidade do jornalismo. Para que a imprensa cumpra com sua função social, são necessários tempo, dinheiro, imparcialidade, dedicação; recursos cada vez mais raros na era da informação abundante, midiática e superficial, que visa o lucro rápido.

Apesar de ser uma história verdadeira, Spotlight é praticamente um filme de terror: de mãos suadas, de nó na garganta, de momentos em que quase se chora sem saber por quê, e que continua a gerar reflexões principalmente quando se vê muitos espectadores alegando que o filme é apenas um projeto para desmoralizar a Igreja Católica, repetindo a mesma atitude que fez com que esses crimes ficassem acobertados — e impunes — por tanto tempo.

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Shoichi Iwashita

Compulsivo por informação e colecionador de moleskines com anotações de viagens e restaurantes, Shoichi Iwashita se dedica a compartilhar seu repertório através das matérias que escreve para a Simonde e revistas como Robb Report Brasil, TOP Destinos, The Traveller, Luxury Travel e Unquiet.

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