Uruguai: O país mais democrático da América Latina (e não é de hoje) que se tornou independente graças a um acordo que nem eles queriam; parte I
Não tinha como esperar precisão na linha reta e imaginária do que a gente conhece como Tratado de Tordesilhas, esse contrato que beirava o absurdo assinado em 1494 que dividia o mundo entre espanhóis e portugueses — com a autorização do papa —, apesar das civilizações com mais de 100 milhões de pessoas que viviam no continente quando da chegada de Colombo em 1492 (a América acabara de ser “descoberta”, os desenhos dos mapas eram tortos e a escala tampouco precisa, e Portugal e Espanha não estavam assim lá muito comprometidos em respeitar muito minuciosamente o acordo que eles mesmos tinham assinado). E é no meio dessa confusão — afinal o Rio da Prata estava ou não do lado português da linha de Tordesilhas? — onde está hoje o Uruguai, esse pequeno país sem montanhas que é um bastião histórico da democracia na América Latina, que só come carne vermelha apesar de rodeado por águas, onde o mate é uma unanimidade e que só queria ser ver livre do império brasileiro e pertencer à Argentina (na época, Provincias Unidas) mas acabou tendo sua independência decretada por um acordo entre Brasil, Argentina e Inglaterra (ingleses, sempre eles) assinado no Rio de Janeiro (!) em 1828.
O Río de la Plata — que tecnicamente não tem nada de rio — é um golfo e um estuário (ambiente de transição entre um rio e o mar; nesse caso, conectando os enormes rios Paraná e Uruguai ao Oceano Atlântico), que abriga em suas margens Buenos Aires de um lado, e do outro, Colonia del Sacramento, Montevidéu e Punta del Leste (a linha que liga as duas puntas, a del Este e a Rasa, é a divisa oficial entre o fim do rio e o começo do oceano). E apesar da ausência de riquezas nessa imensa região, se comparadas ao que os espanhóis encontrariam no México, no Peru e na Bolívia, os rios que desembocam no Prata conseguiam trazer prata lá da Bolívia — onde fica Potosí, a cidade que tinha as minas de prata que representaram 60% da mineração do metal no mundo no século 16 — para que ela pudesse ser embarcada no porto de Buenos Aires com destino à metrópole (ou mesmo ao Rio de Janeiro). Ou seja, o Rio da Prata era uma região estratégica para os espanhóis, que ficaram tensos quando os portugueses fundaram Colônia do Sacramento desafiadoramente em frente a Buenos Aires em 1680. Foram 350 anos de conflitos entre portugueses e espanhóis, que investiram uma quantidade vultosa de recursos para estabelecer — e manter — as colônias espanholas no Prata. Na foto de satélite da Nasa acima, é possível ver o golfo do Río de la Plata, a diferença de cor entre as águas que vêm dos rios Paraná e Uruguai e a do Oceano Atlântico, e as aglomerações urbanas. Imagem: Reprodução.
OS INGLESES MANDAM
Mas os portugueses estavam ávidos por prolongar suas fronteiras sul-americanas até a embocadura do Prata. E os espanhóis, nada dispostos a ceder tanto terreno para o avanço luso. A crise chega ao auge quando tropas luso-brasileiras invadem a Banda Oriental do Uruguai em 1811 (“oriental” porque estava a leste do Rio Uruguai). O pretexto de Dom João, que chegara ao Brasil em 1808 fugindo de Napoleão, era o de que sua esposa, Carlota Joaquina, herdeira do trono espanhol (seu irmão, Fernando 7, rei de Espanha, havia sido preso por Bonaparte), tinha direito sobre as colônias espanholas na América do Sul; e a ideia de obedecer a uma infanta teria sido apoiada pelos colonizados. E tem mais: o medo de que as ideias abolicionistas e antimonárquicas do revolucionário oriental José Artigas, que buscava a independência da Banda Oriental, se espalhassem pelo Brasil também preocupavam Dom João. Mas os ingleses, que queriam a libertação e fragmentação completa das colônias espanholas (o fato de a Espanha, agora nas mãos dos franceses, ter o monopólio sobre o comércio da América espanhola era um obstáculo para as políticas britânicas) e tampouco queriam apoiar o expansionismo de Portugal, convencem D. João do contrário. E ele retira suas tropas da Banda Oriental em 1812. (Na Europa, a Inglaterra procurava se unir à Espanha contra Napoleão e não era de interesse espanhol que a coroa portuguesa tivesse qualquer controle sobre o Prata. Dom João também muda de ideia quando percebe que Carlota nunca hesitava em conspirar contra o próprio marido; ela, ambiciosa que era, além de querer seu reino na América, ainda chegaria a aspirar à regência da Espanha.) Na foto, detalhe do quadro “Carlota Joaquina com 39 anos de idade”, do pintor português João Batista Ribeiro, obra de 1824. Imagem: Reprodução Google Art Project.
O URUGUAI É DO BRASIL
Em 1816, a morte da rainha louca, Dona Maria, e a consequente ascensão ao trono do agora Dom João 6 coincidem com uma nova invasão luso-brasileiro — dessa vez, com um exército muito maior —, que resultaria, depois de muitas batalhas, em 1821, na anexação da Banda Oriental do Uruguai ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. A região agora passa a se chamar Província Cisplatina, que quer dizer “do lado de cá do Rio da Prata”, ou seja, do lado do Brasil. Mas, em 1822, Dom João 6 precisa voltar para Portugal e Dom Pedro I, que fica aqui, declara a independência do Brasil. E, aproveitando a nova realidade, é nesse mesmo ano que a Província Cisplatina começa a armar sua própria independência. Em 1825, financiados pelas Provincias Unidas (atual Argentina), os orientais começam la Cruzada Libertadora, a Guerra Cisplatina, que iria até 1828, quando a Argentina e o Brasil assinam, no Rio de Janeiro, um tratado reconhecendo o Uruguai como um país independente, seguindo os conselhos da Inglaterra: um estado para-choques estrategicamente estabelecido entre duas jovens nações expansionistas. Ou ainda, nas palavras do mediador inglês: “colocamos algodão entre dois cristais”. Só que não era isso o que os orientales queriam. Eles queriam se ver livres dos brasileiros e pertencer às Províncias Unidas. E a notícia da independência faz com que eles precisem lidar com o enorme e inesperado desafio de criar um estado. Na imagem acima, o mapa de Jean-Baptiste Debret da Província Cisplatina. Imagem: Reprodução.
Mas não pense que a criação do Uruguai solucionaria os conflitos da região do Prata. Por ainda mais cem anos, os montes ondulantes dos pampas ainda seriam regados por muito sangue em uma série de conflitos. E o Brasil se envolveria em quase todas elas. Na imagem, detalhe do quadro “El Juramento de los Treinta y Tres Orientales”, quadro de Juan Manuel Blanes, que mostra a chegada dos Trinta e Três Orientais à Província Cisplatina, o movimento que resultaria na independência do Uruguai, em 1828. O quadro está no Museo de Bellas Artes Juan Manuel Blanes, em Montevidéu. Imagem: Reprodução.
Continua…
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